No longa “Violação de
Privacidade”, o magnífico Robin Williams interpreta um montador de filmes que
são produzidos por chips inseridos no cérebro das pessoas antes de seu
nascimento e que registram os fatos ocorridos durante toda a sua vida (emoções,
situações, vivências). Após a morte, o mecanismo é retirado e o material nele
existente é transformado em filme que, editado, retrata apenas os momentos
positivos e marcantes do falecido, omitindo-se os fatos obscuros e absolvendo-o
(virtualmente) dos pecados cometidos. Em
seguida, numa cerimônia especial as “rememórias” são exibidas a familiares e
amigos do morto numa homenagem falsificada criada por terceiro para transmitir
aos sobreviventes apenas o que preserva a imagem com a qual o “de cujus”
gostaria de ser lembrado.
Se na ficção já é possível
selecionar e preservar determinadas situações vividas por alguém após sua morte,
divulgando apenas o que não interfere na imagem social (afinal, todos assumimos
uma persona para sobreviver socialmente, segundo Carl Jung), na vida real e no
que se refere aos aspectos virtuais isso também já se mostra possível. (1)
Vivemos a era da “digitalização
das relações sociais”: as interações profissionais, familiares, amorosas e de
amizade se tornam a cada dia mais virtuais, concentrando nas redes sociais e
“nuvens” não apenas as lembranças, fotos, músicas, filmes e livros mas também
documentos, e-mails, senhas e códigos bancários, contratos eletrônicos e
sistemas.
Essa exposição diária gera uma
infinidade de situações pessoais e profissionais, formando um gigantesco
patrimônio digital, com ou sem valor econômico, mas que constitui propriedade
do usuário e que resulta em direitos e deveres relativos a esse novo mundo que
se estabelece.
A evolução e mudança nas relações
sociais geradas pela internet necessitam do direito uma resposta ágil às
suposições e questionamentos sobre os fatos, possibilitando assim antever
possíveis conflitos originários dessas interações.
Se considerarmos que “a vida
digital tem vida própria, ou seja, sua existência online irá sobreviver a você”
(2), é possível prever problemas patrimoniais, criminais e relativos à sucessão
quando ocorrer a morte ou incapacidade do usuário virtual. Especificamente com
relação à sucessão patrimonial, surge então o seguinte questionamento: qual
destino será dado ao seu patrimônio digital quando ocorrer a sua morte ?
O direito sucessório surgiu com o
fortalecimento da propriedade privada e consequente interesse do homem na
produção de renda e geração de valores, na certeza de que suas aquisições seriam
transmitidas aos herdeiros. No Brasil, foi elevado à categoria de direito
fundamental através do art. 5º, XXX, da Constituição Federal (3).
“Herança” pode ser definida como
o conjunto patrimonial do indivíduo: a soma dos direitos, bens e obrigações que
serão transmitidos aos herdeiros.
Porém, na atual sistemática
digital, na herança também devem ser incluídos os bens que não possuem valor
econômico/patrimonial atualmente, mas que têm elevado valor sentimental. Assim,
o acervo digital de uma pessoa pode ser classificado em duas espécies: a) bens sem valoração econômica – textos, fotografias,
áudios, vídeos, nomes e senhas de usuários, e-mails criados diretamente na
web ou salvos em uma “nuvem”; b) bens
economicamente valoráveis – quaisquer bens que tenham valor patrimonial –
games, filmes, e-books, álbuns musicais, licenças de software.
Diante da infinidade de valores
envolvidos na herança digital, é natural a preocupação com o destino do acervo
após a morte não apenas por motivos econômicos, mas principalmente por motivos pessoais,
já que envolve direitos fundamentais como privacidade e intimidade. Afinal, a
quem você confiaria o acesso irrestrito a toda a sua vida privada ?
A forma mais simples e rápida de
determinar o destino da herança digital se dá através do testamento. No Brasil,
embora não exista lei específica permitindo a inclusão da herança digital em
testamentos, também não há lei proibindo, o que possibilita que os serviços
como Dropbox, Google Docs e iCloud integrem o documento. Devem
também fazer parte do testamento o acesso das contas com informações pessoais
(e-mails e redes sociais), constando a manutenção ou quebra do sigilo. Assim,
se o falecido determinou em testamento que se mantenha sigilo sobre suas senhas
pessoais, os herdeiros nada poderão fazer a não ser cumprir a última vontade do
testador. Mas se não houver determinação testamentária pelo sigilo, os
herdeiros podem buscar via decisão judicial o acesso às senhas, documentos,
e-mails e demais bens virtuais, utilizando-se deles como melhor lhe aprouver.
Como o testamento ainda não faz
parte da cultura brasileira – talvez até pelo desconhecimento acerca de sua
facilidade – o instrumento ainda é pouco utilizado.
Integrantes do polo passivo de
inúmeras ações judiciais movidas por herdeiros de usuários que buscam na
justiça desde a remoção do perfil do falecido da rede social até acesso a
arquivos de família e informações de grande valor sentimental, as empresas
mantenedoras de sites e páginas sociais já criam mecanismos que antecipam a
vontade do usuário.
O Facebook (4) e o Instagram
(5), por exemplo, apresentam duas opções para o caso de falecimento do titular
da conta: remover o perfil ou transformá-lo em memorial. O Google permite o gerenciamento das contas online pelo usuário, que
poderá decidir previamente o que fazer com fotos, e-mails e arquivos
armazenados, quando interrompido o acesso. Esse mecanismo é chamado “Testamento
Virtual” (6). A Microsoft permite o
acesso de conteúdo armazenado em contas de e-mail (Hotmail, Outlook e Live) do usuário falecido ou incapacitado
através de seu representante legal ou parente mediante a apresentação de
documentos (7). O Twitter
disponibiliza apenas a opção de remoção da conta (8).
Mas há empresas prestadoras de
serviços de internet que se recusam a fornecer acesso aos ativos digitais de um
usuário falecido ou incapacitado, alegando a necessidade de proteção da
privacidade do usuário. A Amazon, por
exemplo, nega acesso a terceiros dos conteúdos do e-reader Kindle, afirmando que se trata apenas da licença de uso do
produto, não uma compra. Já os Termos de Uso da Apple com relação ao Itunes
Store proíbem a venda, aluguel, transferência ou sublicença do produto
adquirido. Diante da recusa, não resta aos herdeiros alternativa senão buscar
via judicial o acesso ao patrimônio digital de quem partiu.
Ocorre que nossa legislação ainda
não prevê a sucessão digital. Assim, as demandas movidas pelos familiares que
buscam resolver as questões do acervo patrimonial digital do herdeiro (encerrar
conta, garantir acesso aos arquivos), resultam em decisões diferentes pelo
judiciário, gerando controvérsias sobre a questão.
Na tentativa de suprir a omissão
legislativa sobre o assunto, foi proposto o projeto de lei (PL 4.099/2012), de
autoria do Deputado Federal Jorginho de Mello e que tem como objetivo alterar o
artigo 1.788 do Código Civil, acrescentando o Parágrafo Único com a seguinte
redação: “(...) Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas
ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança”. O PL já foi aprovado
pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e está
aguardando aprovação pelo Senado Federal.
Mas ao garantir acesso geral e
irrestrito dos dados digitais do falecido aos herdeiros o Projeto sofreu alguma
resistência, sob a alegação de que a permissão de acesso do patrimônio
virtual constitui invasão da privacidade
não somente do usuário, mas também dos terceiros que com ele se relacionavam.
A solução aparentemente simples
de repassar as senhas utilizadas para terceiros pode configurar crime de falsa
identidade, previsto no art. 307 do Código Penal (9), portanto, não é a mais
recomendada.
Embora não seja agradável pensar
sobre a morte e se tenha certa resistência em planejar ainda em vida a
transmissão de seu patrimônio, quando se trata de herança digital isso se
mostra extremamente necessário. Também é importante ressaltar que nem sempre o
convívio entre as famílias é harmonioso, sendo até mesmo absurdo que os herdeiros
com quem o “de cujus” mantinha animosidade mas que são destinatários da herança
possam ter completo e irrestrito acesso a todas as suas informações sigilosas e
privadas.
Assim, o testamento ainda é a
melhor alternativa para garantir que seja cumprida sua última vontade com
relação à destinação de seus bens digitais, preservando-se assim não somente a
sua privacidade, honra e intimidade, mas também os de terceiros que com ele se
relacionaram.
Por Débora C. Spagnol
Advogada
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3 – Art. 5º Constituição Federal:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: (...) XXX – é garantido o direito de
herança”.
9 - Art. 307 - Atribuir-se
ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito
próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa, se o fato não
constitui elemento de crime mais grave.
Referências: