sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A DESTINAÇÃO DO PATRIMÔNIO VIRTUAL EM CASO DE MORTE OU INCAPACIDADE DO USUÁRIO: “HERANÇA DIGITAL”

No longa “Violação de Privacidade”, o magnífico Robin Williams interpreta um montador de filmes que são produzidos por chips inseridos no cérebro das pessoas antes de seu nascimento e que registram os fatos ocorridos durante toda a sua vida (emoções, situações, vivências). Após a morte, o mecanismo é retirado e o material nele existente é transformado em filme que, editado, retrata apenas os momentos positivos e marcantes do falecido, omitindo-se os fatos obscuros e absolvendo-o (virtualmente) dos pecados cometidos.  Em seguida, numa cerimônia especial as “rememórias” são exibidas a familiares e amigos do morto numa homenagem falsificada criada por terceiro para transmitir aos sobreviventes apenas o que preserva a imagem com a qual o “de cujus” gostaria de ser lembrado.

Se na ficção já é possível selecionar e preservar determinadas situações vividas por alguém após sua morte, divulgando apenas o que não interfere na imagem social (afinal, todos assumimos uma persona para sobreviver socialmente, segundo Carl Jung), na vida real e no que se refere aos aspectos virtuais isso também já se mostra possível. (1)

Vivemos a era da “digitalização das relações sociais”: as interações profissionais, familiares, amorosas e de amizade se tornam a cada dia mais virtuais, concentrando nas redes sociais e “nuvens” não apenas as lembranças, fotos, músicas, filmes e livros mas também documentos, e-mails, senhas e códigos bancários, contratos eletrônicos e sistemas.

Essa exposição diária gera uma infinidade de situações pessoais e profissionais, formando um gigantesco patrimônio digital, com ou sem valor econômico, mas que constitui propriedade do usuário e que resulta em direitos e deveres relativos a esse novo mundo que se estabelece.

A evolução e mudança nas relações sociais geradas pela internet necessitam do direito uma resposta ágil às suposições e questionamentos sobre os fatos, possibilitando assim antever possíveis conflitos originários dessas interações.

Se considerarmos que “a vida digital tem vida própria, ou seja, sua existência online irá sobreviver a você” (2), é possível prever problemas patrimoniais, criminais e relativos à sucessão quando ocorrer a morte ou incapacidade do usuário virtual. Especificamente com relação à sucessão patrimonial, surge então o seguinte questionamento: qual destino será dado ao seu patrimônio digital quando ocorrer a sua morte ?

O direito sucessório surgiu com o fortalecimento da propriedade privada e consequente interesse do homem na produção de renda e geração de valores, na certeza de que suas aquisições seriam transmitidas aos herdeiros. No Brasil, foi elevado à categoria de direito fundamental através do art. 5º, XXX, da Constituição Federal (3).

“Herança” pode ser definida como o conjunto patrimonial do indivíduo: a soma dos direitos, bens e obrigações que serão transmitidos aos herdeiros.
Porém, na atual sistemática digital, na herança também devem ser incluídos os bens que não possuem valor econômico/patrimonial atualmente, mas que têm elevado valor sentimental. Assim, o acervo digital de uma pessoa pode ser classificado em duas espécies: a) bens sem  valoração econômica – textos, fotografias, áudios, vídeos, nomes e senhas de usuários, e-mails criados diretamente na web  ou salvos em uma “nuvem”;  b) bens economicamente valoráveis – quaisquer bens que tenham valor patrimonial – games, filmes, e-books, álbuns musicais, licenças de software.

Diante da infinidade de valores envolvidos na herança digital, é natural a preocupação com o destino do acervo após a morte não apenas por motivos econômicos, mas principalmente por motivos pessoais, já que envolve direitos fundamentais como privacidade e intimidade. Afinal, a quem você confiaria o acesso irrestrito a toda a sua vida privada ?

A forma mais simples e rápida de determinar o destino da herança digital se dá através do testamento. No Brasil, embora não exista lei específica permitindo a inclusão da herança digital em testamentos, também não há lei proibindo, o que possibilita que os serviços como Dropbox, Google Docs e iCloud integrem o documento. Devem também fazer parte do testamento o acesso das contas com informações pessoais (e-mails e redes sociais), constando a manutenção ou quebra do sigilo. Assim, se o falecido determinou em testamento que se mantenha sigilo sobre suas senhas pessoais, os herdeiros nada poderão fazer a não ser cumprir a última vontade do testador. Mas se não houver determinação testamentária pelo sigilo, os herdeiros podem buscar via decisão judicial o acesso às senhas, documentos, e-mails e demais bens virtuais, utilizando-se deles como melhor lhe aprouver.

Como o testamento ainda não faz parte da cultura brasileira – talvez até pelo desconhecimento acerca de sua facilidade – o instrumento ainda é pouco utilizado.  

Integrantes do polo passivo de inúmeras ações judiciais movidas por herdeiros de usuários que buscam na justiça desde a remoção do perfil do falecido da rede social até acesso a arquivos de família e informações de grande valor sentimental, as empresas mantenedoras de sites e páginas sociais já criam mecanismos que antecipam a vontade do usuário.

O Facebook (4) e o Instagram (5), por exemplo, apresentam duas opções para o caso de falecimento do titular da conta: remover o perfil ou transformá-lo em memorial. O Google permite o gerenciamento das contas online pelo usuário, que poderá decidir previamente o que fazer com fotos, e-mails e arquivos armazenados, quando interrompido o acesso. Esse mecanismo é chamado “Testamento Virtual” (6). A Microsoft permite o acesso de conteúdo armazenado em contas de e-mail (Hotmail, Outlook e Live) do usuário falecido ou incapacitado através de seu representante legal ou parente mediante a apresentação de documentos (7). O Twitter disponibiliza apenas a opção de remoção da conta (8).  

Mas há empresas prestadoras de serviços de internet que se recusam a fornecer acesso aos ativos digitais de um usuário falecido ou incapacitado, alegando a necessidade de proteção da privacidade do usuário. A Amazon, por exemplo, nega acesso a terceiros dos conteúdos do e-reader Kindle, afirmando que se trata apenas da licença de uso do produto, não uma compra. Já os Termos de Uso da Apple com relação ao Itunes Store proíbem a venda, aluguel, transferência ou sublicença do produto adquirido. Diante da recusa, não resta aos herdeiros alternativa senão buscar via judicial o acesso ao patrimônio digital de quem partiu.

Ocorre que nossa legislação ainda não prevê a sucessão digital. Assim, as demandas movidas pelos familiares que buscam resolver as questões do acervo patrimonial digital do herdeiro (encerrar conta, garantir acesso aos arquivos), resultam em decisões diferentes pelo judiciário, gerando controvérsias sobre a questão.

Na tentativa de suprir a omissão legislativa sobre o assunto, foi proposto o projeto de lei (PL 4.099/2012), de autoria do Deputado Federal Jorginho de Mello e que tem como objetivo alterar o artigo 1.788 do Código Civil, acrescentando o Parágrafo Único com a seguinte redação: “(...) Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança”. O PL já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e está aguardando aprovação pelo Senado Federal.

Mas ao garantir acesso geral e irrestrito dos dados digitais do falecido aos herdeiros o Projeto sofreu alguma resistência, sob a alegação de que a permissão de acesso do patrimônio virtual  constitui invasão da privacidade não somente do usuário, mas também dos terceiros que com ele se relacionavam. 

A solução aparentemente simples de repassar as senhas utilizadas para terceiros pode configurar crime de falsa identidade, previsto no art. 307 do Código Penal (9), portanto, não é a mais recomendada.

Embora não seja agradável pensar sobre a morte e se tenha certa resistência em planejar ainda em vida a transmissão de seu patrimônio, quando se trata de herança digital isso se mostra extremamente necessário. Também é importante ressaltar que nem sempre o convívio entre as famílias é harmonioso, sendo até mesmo absurdo que os herdeiros com quem o “de cujus” mantinha animosidade mas que são destinatários da herança possam ter completo e irrestrito acesso a todas as suas informações sigilosas e privadas.

Assim, o testamento ainda é a melhor alternativa para garantir que seja cumprida sua última vontade com relação à destinação de seus bens digitais, preservando-se assim não somente a sua privacidade, honra e intimidade, mas também os de terceiros que com ele se relacionaram.

Por Débora C. Spagnol
Advogada
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1 – Para saber sobre o conceito junguiano das personas: http://www.psicologiamsn.com/2011/01/persona-jung.html. Acesso em janeiro/2017.
2 – BOSSO, Roseli Aparecida Casarini. A herança digital na nuvem. Disponível em: http://crimespelainternet.com.br/a-heranca-digital-na-nuvem/. Acesso em janeiro/2017.
3 – Art. 5º Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXX – é garantido o direito de herança”.
7 – E-mail para solicitação de informações de conta do falecido: msrecord@microsoft.com
9 - Art. 307 - Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa, se o fato não constitui elemento de crime mais grave.
Referências:



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