Capitu traiu ou não Bentinho? Provavelmente nunca se saberá a
resposta para a dúvida levantada por Machado de Assis. Principalmente porque
toda a história se baseia na narrativa de um dos personagens e que, em razão da
própria dinâmica dos relacionamentos, não pode ser considerado isento. Os olhos
de ressaca de Maria Capitolina – “olhos de cigana, oblíqua e dissimulada” –
criam em Bento sentimentos que o tempo e os acontecimentos se encarregam de
transformar. A princípio encantadora, a personalidade de Capitu passa a
amedrontar, restando ao final como simplesmente repulsiva. A lembrança de
acontecimentos e situações corriqueiras ocorridas na adolescência resulta em um
questionamento que permeará toda a vida de Bentinho: se Capitu enganou e burlou
na juventude algumas pessoas de sua relação (mesmo que com objetivos infantis),
porque não faria isso comigo?
Ao observar os olhos
chorosos da esposa no velório de Escobar e as semelhanças de seu filho Ezequiel
com o amigo morto, a dúvida quanto ao caráter de Capitu torna insuportável a
convivência do casal. Tomado pelo desespero e neurose da dúvida, Bento jamais
consegue a confirmação do adultério. A suspeita, porém, transforma-o
completamente, já que passa a viver uma vida falsa, esconde-se de tudo e de
todos, deixa-se assolar pela sombra da dúvida e do ciúme, remoendo-se no eterno
questionamento: o “Casmurro” que deu nome a uma das obras mais lidas da
literatura brasileira.
O ciúme sempre andou de mãos dadas com o amor: ninguém é
imune aos pensamentos e sentimentos negativos em relação à ameaça de perda de alguém
que lhe é muito importante e precioso. A ele, juntam-se várias outras emoções
igualmente poderosas: desconfiança, medo, ansiedade, incerteza, raiva,
descontrole, depressão...
Parte integrante da complexa natureza humana e das relações
pessoais e profissionais, o ciúme pode ser inocente e inofensivo quando sentido
por pessoas que conseguem lidar bem com ele e com as demais emoções,
dificilmente exteriorizando o que sentem. Porém, outras pessoas externam a dor
do ciúme de forma perigosa e até obsessiva, o que às vezes resulta em ameaças,
agressões e - em casos mais extremos – morte.
Se na época de Bentinho e Capitu a confirmação das suspeitas
de infidelidade dependia mais de fatores presenciais e físicos, a evolução das
relações sociais com base no desenvolvimento tecnológico trouxe novas “armas” a
auxiliar os ciumentos: os aparelhos eletrônicos e seus inúmeros aplicativos. Os
chamados “detetives virtuais” tem provocado uma crescente onda de invasão de
privacidade e rompimentos de relacionamentos: recentes pesquisas atestam que
cerca de 40% dos parceiros descobrem que estão sendo traídos “fuçando” no
celular dos parceiros. A este número, acresce-se a busca em arquivos do próprio
computador, notebook ou “tablete” do vigiado.
Se de um lado a “vigilância” virtual é motivo de prejuízo aos
relacionamentos – o resultado das espionagens pode ser desastroso aos parceiros
– de outro, é estrondoso o lucro de quem cria esses mecanismos destinados a dar
vazão ao “instinto caçador” dos ciumentos incorrigíveis.
Nessa onda polêmica de programas destinados ao controle da
vida amorosa e - porque não – sexual dos parceiros, surgem aplicativos cuja
única finalidade é o controle do par, os chamados “rastreadores de namorados”.
Além de fornecer informações como a localização da “vítima” do ciúme, fornece
cópias de SMS enviados e recebidos e até transforma o celular numa escuta,
revelando tudo o que acontece ao redor. O programa espião avisa ainda quando o
celular for desligado, entrar em modo avião (desativando todas as funções de
GPS e rede) ou estiver fora de serviço. E para completar, avisa ao espionador sempre
que o espionado alterar as configurações do aparelho, desabilitando as funções
do próprio aplicativo espião.
Para não afrontar a política de privacidade do provedor, na
versão gratuita o aplicativo fica visível à vítima, ou seja: sempre que o usuário
requisitar uma informação do app – como localização ou escuta – a vítima é
avisada. Porém, na versão paga (o valor é R$ 4,99), o ícone do aplicativo, as
chamadas e o próprio aplicativo ficam invisíveis ao espionado. A vítima, assim,
pode estar sendo integralmente vigiada sem que tenha qualquer conhecimento
disso.
A instalação desses aplicativos não pode ser feita
remotamente: é preciso que o parceiro ciumento tenha acesso ao celular da
vítima para instalar o programa diretamente da loja virtual do provedor.
Convém lembrar, porém, que a traição (mesmo que virtual) não
é crime – ninguém está livre de se apaixonar por outra pessoa, mesmo que já
mantenha um relacionamento – mas invadir a privacidade de outro – que pode ser
seu parceiro ou esposa, mesmo que sob a justificativa de coação irresistível do
ciúme - é crime.
O parceiro que instalar o aplicativo sem a permissão da
pessoa espionada poderá ser processado civilmente por violação à privacidade,
gênero do qual são espécies a intimidade e a vida privada, valores protegidos
constitucionalmente (art. 5º, X, da CF/88).
Além disso, é crime de interceptação telefônica, descrito no
art. 10 da Lei nº 9.296/96, que afirma: “é inviolável o sigilo da
correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas (...)”. A pena prevista é de dois a quatro anos de reclusão e multa.
A espionagem virtual também configura crime previsto na Lei
Carolina Dieckmann (12.737/12), criada em referência à atriz que foi vítima de
divulgação de fotos íntimas na internet, por técnicos responsáveis pelo
conserto de seu computador. Criou-se assim o tipo penal denominado “invasão de
dispositivo informático”, que prevê pena de detenção de 3 meses a 1 ano, e
multa.
Os computadores, celulares e contas de e-mail são ferramentas
privativas. Aproveitar-se de uma situação de confiança para instalar um
aplicativo ou invadir conversas, fotos ou vídeos privados viola a privacidade, restando
configurada portanto a conduta fraudulenta.
Pode constituir crime também quando a senha está gravada no
computador e o parceiro ciumento, aproveitando-se dessa facilidade, acessa
todas as informações pessoais do parceiro.
Se o espião divulgar os dados obtidos e estes ofenderem a
honra da vitima, a conduta se constitui em crime contra a honra: difamação,
assim definido o ato de atribuir a alguém um fato que ofenda a sua
reputação, levando ao conhecimento de terceiros um fato ofensivo. O fato pode
ser verdadeiro ou não: isso não importa para a caracterização do crime.
Especialistas em direito cibernético recomendam uma série de
medidas que se destinam a preparar o ajuizamento de processos criminais ou
cíveis destinados à reparação da vítima. Caso confirmada a espionagem virtual
no aparelho, o prejudicado não deve apagar as mensagens e históricos “hackeados”; fazer uma Ata Notarial onde
será registrado todo o conteúdo espionado; registrar um Boletim de Ocorrência
e, se necessário for, deixar o aparelho para perícia.
Mas há outras medidas fáceis e práticas que podem evitar a
espionagem virtual: nunca registre o histórico de suas conversas – praticamente
todos os programas e sites dispõe de opções que desativam o registro de
históricos; mantenha seu celular bloqueado por meio de senha e troque-a
periodicamente; desative o recurso que acusa em tela o recebimento de
mensagens; utilize aplicativos que ficam escondidos na quinta página do
smartphone, como o Kik Messenger ou Message Me.
A internet disponibiliza ainda programas que podem ser
auxiliares na tentativa de descobrir se está sendo vítima de espionagem
virtual, como o encontrado neste link: https://www.oficinadanet.com.br/post/9035-como-descobrir-se-existe-um-programa-espiao-no-meu-computador
Mas para além dos cuidados com os aparelhos e das medidas que
devem ser tomadas para se verem ressarcidos os prejuízos morais advindos da
espionagem virtual, talvez a medida mais eficaz seja justamente repensar a
escolha do parceiro. Características como confiança e privacidade são
essenciais a uma relação saudável. Além do que, como dizia François de la Rochefoucauld
(escritor francês do século XVII): “O ciúme nasce sempre do amor, mas nem
sempre morre com ele.”
Por Debora C. Spagnol
Advogada
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.