quinta-feira, 2 de março de 2017

“RASTREADORES DE NAMORADOS”, CAPITU E BENTINHO: A FACE CIUMENTA DO “AMOR”

Capitu traiu ou não Bentinho? Provavelmente nunca se saberá a resposta para a dúvida levantada por Machado de Assis. Principalmente porque toda a história se baseia na narrativa de um dos personagens e que, em razão da própria dinâmica dos relacionamentos, não pode ser considerado isento. Os olhos de ressaca de Maria Capitolina – “olhos de cigana, oblíqua e dissimulada” – criam em Bento sentimentos que o tempo e os acontecimentos se encarregam de transformar. A princípio encantadora, a personalidade de Capitu passa a amedrontar, restando ao final como simplesmente repulsiva. A lembrança de acontecimentos e situações corriqueiras ocorridas na adolescência resulta em um questionamento que permeará toda a vida de Bentinho: se Capitu enganou e burlou na juventude algumas pessoas de sua relação (mesmo que com objetivos infantis), porque não faria isso comigo?

 Ao observar os olhos chorosos da esposa no velório de Escobar e as semelhanças de seu filho Ezequiel com o amigo morto, a dúvida quanto ao caráter de Capitu torna insuportável a convivência do casal. Tomado pelo desespero e neurose da dúvida, Bento jamais consegue a confirmação do adultério. A suspeita, porém, transforma-o completamente, já que passa a viver uma vida falsa, esconde-se de tudo e de todos, deixa-se assolar pela sombra da dúvida e do ciúme, remoendo-se no eterno questionamento: o “Casmurro” que deu nome a uma das obras mais lidas da literatura brasileira.

O ciúme sempre andou de mãos dadas com o amor: ninguém é imune aos pensamentos e sentimentos negativos em relação à ameaça de perda de alguém que lhe é muito importante e precioso. A ele, juntam-se várias outras emoções igualmente poderosas: desconfiança, medo, ansiedade, incerteza, raiva, descontrole, depressão...

Parte integrante da complexa natureza humana e das relações pessoais e profissionais, o ciúme pode ser inocente e inofensivo quando sentido por pessoas que conseguem lidar bem com ele e com as demais emoções, dificilmente exteriorizando o que sentem. Porém, outras pessoas externam a dor do ciúme de forma perigosa e até obsessiva, o que às vezes resulta em ameaças, agressões e - em casos mais extremos – morte. 

Se na época de Bentinho e Capitu a confirmação das suspeitas de infidelidade dependia mais de fatores presenciais e físicos, a evolução das relações sociais com base no desenvolvimento tecnológico trouxe novas “armas” a auxiliar os ciumentos: os aparelhos eletrônicos e seus inúmeros aplicativos. Os chamados “detetives virtuais” tem provocado uma crescente onda de invasão de privacidade e rompimentos de relacionamentos: recentes pesquisas atestam que cerca de 40% dos parceiros descobrem que estão sendo traídos “fuçando” no celular dos parceiros. A este número, acresce-se a busca em arquivos do próprio computador, notebook ou “tablete” do vigiado.

Se de um lado a “vigilância” virtual é motivo de prejuízo aos relacionamentos – o resultado das espionagens pode ser desastroso aos parceiros – de outro, é estrondoso o lucro de quem cria esses mecanismos destinados a dar vazão ao “instinto caçador” dos ciumentos incorrigíveis.

Nessa onda polêmica de programas destinados ao controle da vida amorosa e - porque não – sexual dos parceiros, surgem aplicativos cuja única finalidade é o controle do par, os chamados “rastreadores de namorados”. Além de fornecer informações como a localização da “vítima” do ciúme, fornece cópias de SMS enviados e recebidos e até transforma o celular numa escuta, revelando tudo o que acontece ao redor. O programa espião avisa ainda quando o celular for desligado, entrar em modo avião (desativando todas as funções de GPS e rede) ou estiver fora de serviço. E para completar, avisa ao espionador sempre que o espionado alterar as configurações do aparelho, desabilitando as funções do próprio aplicativo espião.

Para não afrontar a política de privacidade do provedor, na versão gratuita o aplicativo fica visível à vítima, ou seja: sempre que o usuário requisitar uma informação do app – como localização ou escuta – a vítima é avisada. Porém, na versão paga (o valor é R$ 4,99), o ícone do aplicativo, as chamadas e o próprio aplicativo ficam invisíveis ao espionado. A vítima, assim, pode estar sendo integralmente vigiada sem que tenha qualquer conhecimento disso.

A instalação desses aplicativos não pode ser feita remotamente: é preciso que o parceiro ciumento tenha acesso ao celular da vítima para instalar o programa diretamente da loja virtual do provedor.
Convém lembrar, porém, que a traição (mesmo que virtual) não é crime – ninguém está livre de se apaixonar por outra pessoa, mesmo que já mantenha um relacionamento – mas invadir a privacidade de outro – que pode ser seu parceiro ou esposa, mesmo que sob a justificativa de coação irresistível do ciúme - é crime.

O parceiro que instalar o aplicativo sem a permissão da pessoa espionada poderá ser processado civilmente por violação à privacidade, gênero do qual são espécies a intimidade e a vida privada, valores protegidos constitucionalmente (art. 5º, X, da CF/88).
Além disso, é crime de interceptação telefônica, descrito no art. 10 da Lei nº 9.296/96, que afirma: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas (...)”. A pena prevista é de dois a quatro anos de reclusão e multa.  

A espionagem virtual também configura crime previsto na Lei Carolina Dieckmann (12.737/12), criada em referência à atriz que foi vítima de divulgação de fotos íntimas na internet, por técnicos responsáveis pelo conserto de seu computador. Criou-se assim o tipo penal denominado “invasão de dispositivo informático”, que prevê pena de detenção de 3 meses a 1 ano, e multa.  

Os computadores, celulares e contas de e-mail são ferramentas privativas. Aproveitar-se de uma situação de confiança para instalar um aplicativo ou invadir conversas, fotos ou vídeos privados viola a privacidade, restando configurada portanto a conduta fraudulenta.
Pode constituir crime também quando a senha está gravada no computador e o parceiro ciumento, aproveitando-se dessa facilidade, acessa todas as informações pessoais do parceiro.  

Se o espião divulgar os dados obtidos e estes ofenderem a honra da vitima, a conduta se constitui em crime contra a honra:  difamação, assim definido o ato de atribuir a alguém um fato que ofenda a sua reputação, levando ao conhecimento de terceiros um fato ofensivo. O fato pode ser verdadeiro ou não: isso não importa para a caracterização do crime.  

Especialistas em direito cibernético recomendam uma série de medidas que se destinam a preparar o ajuizamento de processos criminais ou cíveis destinados à reparação da vítima. Caso confirmada a espionagem virtual no aparelho, o prejudicado não deve apagar as mensagens e históricos “hackeados”; fazer uma Ata Notarial onde será registrado todo o conteúdo espionado; registrar um Boletim de Ocorrência e, se necessário for, deixar o aparelho para perícia.

Mas há outras medidas fáceis e práticas que podem evitar a espionagem virtual: nunca registre o histórico de suas conversas – praticamente todos os programas e sites dispõe de opções que desativam o registro de históricos; mantenha seu celular bloqueado por meio de senha e troque-a periodicamente; desative o recurso que acusa em tela o recebimento de mensagens; utilize aplicativos que ficam escondidos na quinta página do smartphone, como o Kik Messenger ou Message Me.

A internet disponibiliza ainda programas que podem ser auxiliares na tentativa de descobrir se está sendo vítima de espionagem virtual, como o encontrado neste link: https://www.oficinadanet.com.br/post/9035-como-descobrir-se-existe-um-programa-espiao-no-meu-computador

Mas para além dos cuidados com os aparelhos e das medidas que devem ser tomadas para se verem ressarcidos os prejuízos morais advindos da espionagem virtual, talvez a medida mais eficaz seja justamente repensar a escolha do parceiro. Características como confiança e privacidade são essenciais a uma relação saudável. Além do que, como dizia François de la Rochefoucauld (escritor francês do século XVII): “O ciúme nasce sempre do amor, mas nem sempre morre com ele.”



 Por Debora C. Spagnol
Advogada

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