“A privacidade é componente essencial da formação da pessoa.
A sutil definição do que é exposto ou não sobre alguém, do que se quer tornar
público ou o que se quer esconder, ou a quem se deseja revelar algo, mais do
que meramente uma preferência ou capricho, define propriamente o que é um
indivíduo – quais suas fronteiras com os demais, qual seu grau de interação e
comunicação com seus conhecidos, seus familiares e todos os outros” (1).
As redes sociais se tornaram um palco onde os usuários exibem
o que lhes convém: do trabalho ao novo visual, da família às viagens, alguns
entendem que o momento só tem valor se estiver exposto nas redes. Alguns
renunciam à privacidade em nome de curtidas/“likes” vindos muitas vezes de
pessoas desconhecidas, mas que preenchem a necessidade de aprovação que quase
todos nós, em certa medida, temos.
Na contramão de tanta exposição, há pessoas e situações que
primam pela preservação da privacidade, preferem manter na esfera privada o que
no privado acontece e tentam se proteger de invasões externas de “espíritos
vigilantes”.
Muitas vezes a vigilância e invasão da vida alheia ocorrem
por pessoas que agem à margem da lei, acobertando-se pelo manto enganoso das
supostas boas intenções. E assim proliferam grampeadores profissionais de
telefone; abusos policiais no cumprimento de autorizações judiciais e que, ao
invés de buscar provas de crimes, bisbilhotam conversas alheias para promover
achaques e juízes que autorizam escuta legal de milhares de pessoas (em torno
de 400 mil atualmente), sem atentar para o fato que a maioria dos grampeados
nada deve à lei, sendo injusto e ilegal a intromissão do Estado em suas vidas
privadas.
Também é conhecido o fato que bancos e empresas de cartão de
crédito vendem informações a respeito de clientes para outros prestadores de
serviços ou comerciantes, compartilhando assim os hábitos dos consumidores com
milhares de pessoas.
Mas o que é privacidade ?
O vocábulo “privacidade” tem raiz latina – deriva do verbo privare, cuja forma adjetiva é privatus – e, dentro da legislação
brasileira, é um termo que se presta a finalidades nem sempre relacionáveis
entre si e que se manifesta, por exemplo, na esfera da intimidade ou do
segredo, na esfera pessoal e na esfera privada.
No Brasil, o direito à privacidade se situa no campo do
direito privado, ou seja: o próprio indivíduo tem o poder de decidir qualquer
questão atinente a esse valor da sua personalidade, sendo ilegítima qualquer
tentativa do Estado ou de particulares de se apropriar de aspectos da privacidade.
Sendo integrante dos direitos de personalidade, a privacidade
também possui valores extrapatrimoniais; não são avaliáveis em dinheiro, não
possuem valoração econômica. Mas essa extrapatrimonialidade não impede
repercussão de ordem econômica em caso de violação do direito de privacidade,
seja por previsão contratual ou como compensação pecuniária por ocasião da
violação dos direitos da personalidade.
Como exemplo de contratos que monetarizam o direito à
privacidade, temos os negócios jurídicos que envolvem o uso de imagens, nome,
voz, direito autoral – campanhas promocionais e obras literárias são exemplos
claros – e constituem uma manifestação patrimonial da renúncia à privacidade.
Já a compensação pecuniária pode vir de condenação ao
pagamento de indenização por violação de imagem ou por injúria e difamação, por
exemplo.
Além do princípio da extrapatrimonialidade, o direito à
privacidade possui também as características da vitaliciedade (enquanto viver,
o indivíduo possui o direito); intransmissibilidade (não se comunica com outra
pessoa); imprescritibilidade (o direito não se extingue por decurso do tempo);
irrenunciabilidade (apenas é possível renunciar ao exercício do direito, não ao
próprio direito) e indisponibilidade (não podem extintos, transferidos ou
modificados pela vontade da pessoa).
Alguns doutrinadores conceituam a privacidade em três
esferas: a esfera mais interna (que compreende a liberdade, os assuntos
secretos), a esfera privada (compreendidos assuntos que podem ser
compartilhados com outras pessoas de sua confiança, excluída a sociedade) e
esfera pessoal (exclui apenas assuntos que não interessam a terceiros com quem
a pessoa não tem ligação).
O direito à privacidade recebeu contornos mais consistentes
em termos jurídicos apenas a partir do século XIX, com o lançamento de uma obra
americana em que se utilizava do termo “o direito a ser deixado em paz” e que
se voltava contra a invasão da vida doméstica por jornalistas e suas câmeras
fotográficas, que ameaçavam tornar realidade a profecia “o que é sussurrado nos
quartos há de ser proclamado aos quatro ventos” (2). Assim, o termo privacidade
consistia tão somente no direito de ser preservado da curiosidade alheia,
confundindo-se com o conceito de solidão, o direito de permanecer na esfera
íntima sem perturbações.
Atualmente, porém, com o avanço da tecnologia e expansão da
rede mundial de computadores, a privacidade ultrapassa as limitações impostas a
terceiros e ao Estado de não se intrometer na vida privada do indivíduo,
englobando também o poder jurídico de controlar suas informações que estão em
poder de terceiros – o “controle de
dados” é o termo mais utilizado atualmente quando se fala em privacidade.
Na nossa legislação, o direito à privacidade está
salvaguardado no inciso X, do art. 5º da Constituição Federal, que prevê como
invioláveis “(...) a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação”. A intimidade
compreende a esfera mais pessoal e particular do indivíduo, sendo que a
privacidade consiste na possibilidade de repelir qualquer na sua vida privada,
sentimental, sexual e familiar do indivíduo, incluindo-se o direito ao segredo.
O Código Civil em seu artigo 21 diz ser inviolável a vida
privada da pessoa natural, reforçando a previsão constitucional como uma
liberdade negativa – uma tentação a ser evitada - prevendo que o juiz, “(...) a
requerimento do interessado adotará as providências necessárias para impedir ou
fazer cessar ato contrário a esta norma”.
A violação da privacidade, assim, pode sujeitar o violador a
responder pelos prejuízos causados a quem se percebeu invadido.
Da inicial conotação negativa – quando se impunha aos outros
tão somente um dever geral de não fazer atribuída quase que exclusivamente à
burguesia e, portanto, com forte caráter individualista – a privacidade passou
a ser objeto de preocupação do legislador no que se refere aos dados pessoais
constantes da rede mundial de computadores.
Mas como proteger a privacidade na rede ?
Muitos desconhecem que os dados que compartilham nas redes
são utilizados para gerar publicidade. Outros tantos se lembram da privacidade
somente quando sofrem alguma violação
que lhe traga prejuízo material ou moral.
Embora possa se admitir uma certa preocupação dos usuários
quanto à proteção dos dados lançados nas redes, grandes empresas como Google e
Facebook não fornecem a transparência necessária sobre o destino, como obter
mais informações ou apagar os dados, quando já não interessa a manutenção do
serviço. Sendo o princípio da transparência um direito previsto no Código de
Defesa do Consumidor (1), não poderia ser considerado como opção, mas sim um
dever das empresas. Outro aspecto diz respeito à legislação: as empresas não
buscam se adequar às normais e leis de cada país em que atuam, preferindo
manter a política de privacidade americana, o que dificulta ainda mais o acesso
do usuário a essas informações.
Nossa legislação, por sua vez, não colabora para que as
informações dos usuários das redes sociais sejam preservadas, porque na prática
não existem normas que regulamentem a contento a coleta e o tratamento dos
dados pessoais.
É relevante o volume de dados que essas empresas obtêm todos
os dias: o Facebook registra em seu sistema 4,5 bilhões de curtidas e tem 76
milhões de brasileiros usuários; o Google percorre 20 bilhões de sites
diariamente, a fim de manter o buscador atualizado e o Gmail (correio
eletrônico que possui a maior quantidade de usuários no mundo), recebe
mensalmente em torno 287,9 milhões de visitantes, passando à frente dos
concorrentes Hotmail e Yahoo.
Só pelo volume de usuários seria natural esperar o bom uso de
seus dados – o que na realidade não se confirma. Além da utilização abusiva das
informações dos usuários pelas empresas mantenedoras dos endereços eletrônicos,
o próprio governo brasileiro se utiliza (de forma arbitrária) dessas
informações espontaneamente fornecidas.
Neste sentido, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) (4), ao mesmo
tempo em que mantém a vigilância do Estado sobre os dados de serviços on-line,
representa uma ameaça à democracia e aos direitos fundamentais, na medida em
que facilita o acesso dos dados pelas autoridades administrativas.
Se por um lado é praticamente impossível se proteger da venda
dos dados pessoais disponíveis nas redes sociais, por outro os usuários possuem
formas de controlar as informações disponíveis.
O Facebook disponibiliza não somente níveis de privacidade ao
acesso do perfil (usuários indesejados podem ser bloqueados), como também das
postagens na timeline.
O Instagram também permite cadastrar a conta como “privada”,
restringindo assim o alcance das publicações aos seguidores devidamente
aprovados pelo usuário.
Além disso, há cuidados simples que podem ajudar o usuário a
manter um razoável nível de privacidade nas redes sociais: restringir
informações sobre os locais que frequenta, não falar sobre a vida financeira,
ter critério na publicação de fotos e vídeos, evitar responder a provocações e
ameaças, mudar as senhas periodicamente, dispensar atenção redobrada nas
compras on-line e ao usar computadores públicos, não adicionar desconhecidos,
bem como utilizar antivírus e softwares atualizados (5).
Na vida profissional, torna-se cada mais importante a
discrição do perfil nas redes sociais: além de ser um “cartão de visitas” do
usuário, há empregadores que monitoram inclusive a presença do nome da empresa
nas redes, buscando punir funcionários que reclamam ou que divulgam informações
sigilosas. Na Justiça do Trabalho, o
resultado da má conduta “on line” do empregado pode resultar em demissão por
justa causa (6).
O uso das redes sociais e dos dados provenientes delas ainda
rende muitos debates. O que não se pode, porém, é negar a sua ampla
disseminação e o papel que elas ocupam na sociedade: seria possível imaginar
nossa vida sem internet, Facebook e Google ?
Por Debora C. Spagnol - advogada
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Fontes:
1 – DONEDA, Danilo. Privacidade, vida privada e intimidade no
ordenamento jurídico brasileiro. Da emergência de uma revisão conceitual e da
tutela de dados pessoais. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2460. Acesso fevereiro/2017.
2 – DONEDA, Danilo. Considerações iniciais sobre os bancos de
dados informatizados e o direito à privacidade. Disponível em: http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Consideracoes.pdf. Acesso fevereiro/2017.
3 - Consoante se obtém do inciso III, artigo 6º da Lei
8078/90, os fornecedores estão obrigados a disponibilizar informação adequada e
clara sobre produtos e serviços, a fim de que o consumidor possa fazer suas
escolhas de forma consciente. O legislador não se limitou à inclusão do
princípio da transparência no texto da lei, incluindo alguns dispositivos
visando regular a publicidade veiculada ao citado princípio. Segundo o artigo
30, do CDC, a informação ou publicidade veiculada pelo fornecedor, deverá ser
suficientemente precisa, com relação ao produto ou serviço oferecido, obrigando
o fornecedor e passando a integrar o contrato que vier a ser celebrado com o
consumidor. Portanto o cuidado do fornecedor, ao veicular qualquer tipo de
publicidade, deve ser direcionado não apenas para as informações de maneira
clara, mas principalmente correta, sob pena de se vincular a uma proposta que
não era aquela pretendida.
4 – Lei 12.965/14 - Art. 10 - A guarda e a
disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet
de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações
privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra
e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
§ 1o O provedor
responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros
mencionados no caput, de forma autônoma ou associados a dados pessoais
ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário
ou do terminal, mediante ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste
Capítulo, respeitado o disposto no art. 7o.
§ 2o O conteúdo das
comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem
judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto
nos incisos II e III do art. 7o.
§ 3o O disposto no caput
não impede o acesso aos dados cadastrais que informem qualificação pessoal,
filiação e endereço, na forma da lei, pelas autoridades administrativas que
detenham competência legal para a sua requisição.
5 – Dicas completas no link: https://www.infowester.com/dicasprivacidade.php. Acesso em fevereiro/2017.
6 – Notícia completa no link:
http://www.ncstpr.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=851:mau-comportamento-na-rede-pode-ocasionar-demissao-por-justa-causa-&catid=33:saiu-na-imprensa. Acesso em fevereiro/2017.
7 – Saiba quais os dados ficam expostos quando você acessa os
serviços. Fonte: http://www.opera10.com.br/2015/05/redacao-proposta-2015-28-privacidade-em.html.
Acesso em fevereiro/2017